quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Adultos: já pra brincadeira!


Para conservar a curiosidade, a imaginação e a transgressão, é importante brincar sempre
por Eugenio Mussak

Alguns mitos precisam ser derrubados. Um deles é que a infância termina quando ficamos grandes. Quem pensa assim considera que infância é apenas uma fase da vida, um ciclo biológico durante o qual o corpo cresce aceleradamente e importantes mudanças fisiológicas acontecem. Mas há quem ache que infância é mais que isso, é um estado de espírito, cheio de qualidades que promovem o desenvolvimento da alma. Ao pensar dessa forma, aceitam que ela não termina quando começa a idade adulta; ao contrário, persiste por toda a vida. Estou nesse grupo.

Há pelo menos três qualidades na criança, necessárias para permitir sua interação com mundo: a curiosidade, a imaginação e a transgressão criativa. A primeira serve para que ela acelere o processo de percepção e entendimento do mundo; a segunda, para que ela crie, em sua cabecinha, o mundo que ela deseja, sem as mazelas que ela vai percebendo que existem; e a terceira, para que ela ouse modificá-lo para dar lugar a esse mundo ideal.

Sem essas três características humanas, que nascem conosco, provavelmente ainda estaríamos na Idade da Pedra. Foram elas que promoveram a evolução, o desenvolvimento, todo o conjunto de coisas que inventamos ao longo de todos esses séculos. Pois bem, essas qualidades são infantis, primárias, precoces, mas podem perdurar pela vida, conservando, no adulto, um jeito de criança.

O problema é que nós teimamos em acabar com essas qualidades quando crescemos, porque alguém – provavelmente um grande chato – disse que elas não combinam com ser sério e responsável. Ora, o que seria dos inventores, dos artistas, dos poetas, dos cientistas e dos grandes promotores de mudanças se eles não tivessem conservado em si a curiosidade, a imaginação e a transgressão? Aliás, foi Einstein quem disse que a imaginação é mais importante que o conhecimento. E depois foi tirar aquela foto de língua para fora, brincando com o fotógrafo e com o mundo.

Então, o adulto pode continuar a brincar sem parecer ridículo? Estou escrevendo este artigo nos Estados Unidos, aonde vim para um curto período de estudo e, claro, diversão. Aqui eles têm um ditado curioso a esse respeito. Dizem: “The difference between men and boys is the price of the toys” (a diferença entre homens e meninos é o preço dos brinquedos).

Eu sei, trata-se de uma frase com forte apelo consumista e de gosto duvidoso, mas mostra como funciona a cabeça dessse povo, que desenvolveu a maior indústria de entretenimento do mundo, além de dar uma pista da essência do ser humano.

Por acaso, uma das pessoas a quem vim conhecer foi o Dr. Elkhonon Goldberg. Trata-se de um neurocientista de origem russa, pesquisador na Universidade de Nova York e autor de vários livros, entre eles O Paradoxo da Sabedoria, em que ele mostra que a mente pode manter-se lúcida e ativa apesar do envelhecimento do cérebro. Uma das condições, ele insiste, é manter-se capaz de brincar, especialmente consigo mesmo.

Quando cheguei a seu gabinete, o Dr. Goldberg abriu a porta e foi logo me perguntando se eu me incomodava com a presença de animais. Eu respondi que não, que gostava muito, que tinha duas cachorras e uma gata em casa. Ele então me fez entrar e eu pude ver em cima do sofá um imenso mastim napolitano que atendia pelo nome de Britt. Quer dizer, atendia em termos, porque demorou a ser convencido a ceder o sofá para a visita. Dr. Goldberg é uma pessoa bem-humorada. Brinca o tempo todo, de um jeito que, para os mais sisudos, talvez pareça não combinar com um cientista de renome mundial. Mas ele é assim, e em minutos eu já estava totalmente à vontade.

Ao longo da conversa, entramos no assunto da importância dos estímulos ambientais para o desenvolvimento do cérebro, e foi quando ele conseguiu me surpreender ainda mais. Esticou o braço e pegou da estante um livro em russo, escrito no começo do século passado, em que o autor já se referia a esse tema. Era um original de Lev Vigotsky, um dos maiores pensadores em educação que o mundo já produziu. E, para encanto meu, havia nele uma dedicatória de sua viúva, que o presenteou diretamente ao nosso doutor.

Vigotsky diz que o processo de brincar não torna o brinquedo um mero utensílio de distração, mas um gerador de situações imaginárias. Ele aponta em seu livro A Formação Social da Mente que toda brincadeira, por mais livre e espontânea que pareça, é regida por regras “ocultas”. A principal delas é que a criança quando brinca está sendo totalmente espontânea, pois está brincando de ser ela própria, ou seja, ela brinca de ser criança. Mesmo que, em sua brincadeira, ela esteja imitando um adulto – um piloto ou um bombeiro, por exemplo –, ela está brincando de criança que imita o adulto.

Assim, o psicólogo russo concluiu que a brincadeira é o caminho fundamental para o desenvolvimento da mente humana, pois se trata de uma idealização da realidade, a partir da qual a criança começa a sentir-se parte do mundo, exercendo, inclusive, o poder de modificá-lo. Manter-se capaz de brincar pela vida afora é manter a capacidade de interagir com a realidade da melhor forma, com humor, imaginação e alegria.

Brincar ajuda a aprender? Fragmentar a diversão como objeto de estudo é algo tão intrincado quanto completar um quebra-cabeça com mais de 1000 peças, mas também não é algo tão difícil quanto ganhar superpoderes para salvar o mundo do mal. A primeira peça é a que mostra que é só na alegria que a criança se coloca inteira. É fácil deduzir que, se ela considerar o ato de aprender uma brincadeira, isso aumentará em várias vezes sua capacidade de se concentrar. Portanto, brincar ajuda a aprender.

Quem explica isso é a biologia. O biólogo evolucionista Marc Bekoff, da Universidade do Colorado, descobriu, ao comparar o cérebro humano com o de outros mamíferos, que há, entre eles, muitas semelhanças. Uma delas é a produção do neurotransmissor dopamina, responsável pela sensação de alegria e que também ajuda na construção de novas possibilidades. Em outras palavras, estimula o aprendizado.

“Brincar leva a uma flexibilidade mental e a um vocabulário comportamental mais amplo que auxilia o animal a obter sucesso no que importa: dominância do grupo, seleção de companheiros, prevenção de captura e busca por alimento”, disse Bekoff. Dessa forma, ser humano e bicho funcionam de forma similar: ambos criam crescentes conexões nervosas ao longo da brincadeira, e estas ajudam a formar uma cabeça mais ágil e aberta ao novo.

E há mais gente que, sem querer querendo, está metendo sua colher de pau nesse angu. Gilles Brougèr, por exemplo, é um especialista em jogos e brinquedos. Ele coloca uma pitada de semiótica na discussão ao afirmar que as brincadeiras têm signifi cado antropológico, e que não são simples passatempos. “O brinquedo é um dos reveladores de nossa cultura”, diz ele. E insiste que, ao brincar, estamos revelando o jeito de ser de nosso grupo humano.

Então o brinquedo não está à sombra da sociedade, ele revela a identidade social da criança e, como consequência, do adulto que ela virá a ser. O brinquedo é o pensamento vigente em forma de objetos de plástico. Como se vê, não dá para parar de brincar; a humanidade perderia uma ótima oportunidade de entender a si mesma.

E em casa? É saudável um casal manter as brincadeiras entre si e com os filhos? E como. Desde a Grécia, os antigos – e sapientíssimos – habitantes já usavam o ato lúdico para criar e curar. Arquimedes já citava que “brincar é a condição fundamental para ser sério”; os atenienses concediam peças musicais, teatros e espetáculos de comédia aos doentes; no século 16, os médicos já diagnosticavam o entretimento como o melhor medicamento para todos os males: “A alegria dilata e aquece o organismo, já a tristeza contrai e esfria o corpo”.

Enfim, se você, adulto ciente e responsável, ainda não desatou a brincar, é porque ainda lhe falta maturidade. Deixar-se levar pela imaginação, não tenha medo de ir contra a maré da “adultice”, de dar risada de si mesmo, abraçar a espontaneidade, correr, gritar, pular, usar o siso somente quando necessário e abusar – e muito – do riso.

Com relação aos baixinhos em casa, não tente transformá-los em mini adultos. Cursar novas línguas pode fazer bem à mente. Praticar esportes pode estimular o corpo. Aprender a tocar violoncelo pode lavar a alma. Mas desde quando rechear o dia do seu filho com tantas atividades é sinônimo de qualidade? Celular, computador, agenda cheia. Quando ele tem tempo para brincar sem estar preso à grade de horário?

É difícil conciliar estudo e diversão em tempos em que escolas priorizam formar cidadãos mais “competentes para o mercado de trabalho” que “aptos para a vida”. Contudo, é bom ressaltar que aprender e brincar se complementam. Divertirse estimula a criatividade e abre novos caminhos ao aprendizado.

Não tenha pressa em tornar seu pimpolho um pequeno sisudo. Ele irá adquirir competências de gente grande de um jeito ou de outro, cada coisa a seu tempo. E deixe que ele faça você se lembrar de sua infância, de um tempo passado que pode continuar ainda hoje – se você quiser –, assim você aprenderá que a infância não precisa morrer nunca.

Num cemitério do Rio de Janeiro há um túmulo diferente. Nele, uma lápide revela o espírito de quem ali repousa. Diz: “Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino”. A frase foi escolhida pelo próprio escritor mineiro para imortalizar seu maior valor – a maravilhosa capacidade de brincar.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Intolerância e exclusão


ROSELY SAYÃO

A diretora de uma escola me contou um fato interessante. No segundo semestre do ano, muitos pais visitam escolas porque terão de matricular ou transferir o filho no próximo ano. Ela disse que ouviu uma pergunta inédita de vários deles: "Qual o perfil dos pais que matriculam seus filhos aqui?"
Qual o intuito desses pais? Pensei que, talvez, eles buscassem identificação, ou seja, procuravam saber se fariam parte do grupo, se as outras famílias seriam parecidas pelo menos em alguns pontos com eles.
Essa tem sido uma característica de nosso tempo: com tanta diversidade, buscamos o parecido, o semelhante, o quase igual para nos juntarmos.
Vemos isso pelas vestimentas, pelos modelos de carros e celulares, pelo uso da linguagem de grupos que têm afinidades entre si, seja pela condição econômica, seja pelo bairro ou cidade em que moram, seja pelos locais que frequentam etc. Ora, a escola dos filhos não iria escapar desse modo de se agrupar.
Quando ouvi o relato dessa diretora, lembrei-me de outro fato contado por uma mãe. Sua filha, de 12 anos, tivera de trocar de escola e enfrentava dificuldades para fazer parte do grupo de meninas de sua sala.
Sabe como é, leitor: as crianças rejeitam e excluem seus pares com facilidade, já que ainda se relacionam de acordo com seus interesses sempre temporários e por temer a diferença.
Um dia, a filha dessa leitora chegou em casa com alguns pedidos bem diferentes: queria trocar de relógio, cortar o cabelo, comprar pulseiras e, inclusive, trocar os óculos de grau que usava por lentes de contato.
Depois de conversar com a filha, a mãe descobriu que ela havia recebido das colegas de classe essas e outras instruções, que vieram, inclusive, por escrito, que ela teria de seguir para ser aceita pelo grupo. Para sorte dessa garota, a sua família não levou a sério o fato e até brincou com ele, de modo que ela teve a chance de não se sentir pressionada pelo evento.
Os dois fatos, e outros que observamos ou vivemos diariamente, me fizeram pensar no filme "A Onda", que relata uma experiência escolar em que um professor de história implanta em sua sala um clima inspirado no nazismo para demonstrar que ainda seria possível isso acontecer. O problema é que ele perde o controle da situação porque os alunos ficam absolutamente fascinados com a disciplina, com a homogeneização e com o sentido de fraternidade que se constrói no grupo. Com isso, os diferentes são excluídos e ignorados. Por sinal, vale a pena assistir ao filme.
Ele nos alerta principalmente a respeito do autoritarismo dos grupos em detrimento do pensamento crítico pessoal, dos comportamentos e atitudes diferentes da maioria e, portanto, das liberdades individuais. Já vivemos isso na atualidade, não?
A filha de nossa leitora sentiu isso na pele com apenas 12 anos. A protagonista daquele lamentável evento ocasionado por um vestido curto e vermelho ocorrido em uma universidade também. Hoje, os gordos -e não me refiro à obesidade mórbida-, os que fumam, os que não praticam exercícios físicos e que gostam de comer bem sem se preocupar com calorias e gorduras nem com a saúde perfeita, os que não competem, os chamados "perdedores", são excluídos dos grupos -muitas vezes, de maneira humilhante. A intolerância ganha cada vez mais terreno.
Precisamos pensar se queremos manter esse clima de servidão voluntária ao grupo entre os mais novos ou se vamos intervir para evitá-lo.


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ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (ed. Publifolha)

roselysayao@uol.com.br

blogdaroselysayao.blog.uol.com.br

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

ESCOLAS DA FINLÂNDIA NÃO REVELAM PAIXÃO PELO COMPUTADOR

A Finlândia oferece à sua população aquela que é considerada a melhor educação entre todos os países do mundo. Esse nível de excelência alcança tanto a universidade, como o ensino nos níveis médio e primário. Tais resultados decorrem, acima de tudo, da qualidade de seus professores, das instalações de suas escolas, da adequação de seus currículos, do número de horas efetivas de aulas e da seriedade dos processos de avaliação da aprendizagem.

Que bom seria se professores brasileiros pudessem dar um depoimento parecido com este que ouvi de um professor de primeiro grau finlandês: "Como educador, sou bem remunerado, sinto-me integrante da classe média, tenho casa própria, automóvel, sei que terei uma aposentadoria decente e que meus filhos poderão estudar nas melhores escolas. A sociedade me respeita e reconhece o valor de minha contribuição para o futuro das crianças e jovens de meu país".

Ao visitar a Finlândia no ano passado, minha maior surpresa foi notar que suas escolas não revelam nenhuma paixão especial pelo computador ou pela banda larga. É claro que seus educadores consideram esses recursos tecnológicos importantes, mas afirmam que eles devem ser utilizados na dose certa, no momento exato e de modo correto.

Um dos exemplos desse uso correto é o curso que a escola de nível médio ministra a garotos e adolescentes na Finlândia e em outros países da Europa, para prepará-los para o uso competente do computador e da internet, fornecendo-lhe, ao final, o certificado chamado computer driving license, por analogia com a carteira de habilitação de motorista. Seria muito bom que as crianças brasileiras dispusessem de cursos periódicos semelhantes.

UM LAPTOP POR ALUNO?

Não tenho dúvida de que a maioria das pessoas que defende o projeto de Um Laptop por Criança (OLPC, na sigla em inglês One Laptop Per Child) para o Brasil e outros países emergentes, são pessoas bem-intencionadas e idealistas. Mas basta refletir um pouco mais para se comprovar a fragilidade desse projeto.

Sejamos realistas. A maioria das crianças não poderá levar seu laptop à escola sem correr o risco de assalto no caminho, em especial em São Paulo e no Rio de Janeiro. Os que conseguirem chegar à escola com a máquina, serão, com certeza, tentados a navegar pelos sites mais inadequados durante as aulas. Nesse caso, o laptop será muito mais um elemento de dispersão da atenção do aluno do que uma boa ferramenta de ensino. A experiência finlandesa mostra claramente que o computador, quando usado rotineiramente em sala de aula, sem critério, não traz nenhum benefício para a aprendizagem. Pelo contrário, prejudica o aproveitamento escolar do aluno.

É claro que muitas escolas poderão oferecer a seus alunos acesso a terminais de computadores de uma rede local, com recursos audiovisuais e didáticos, para o ensino de geografia, história, matemática, física, química, biologia, literatura e outras matérias, a partir de projetos pedagógicos bem concebidos.

Nesse sentido, seria útil e desejável que os garotos aprendessem a usar em casa alguns aplicativos para a aprendizagem de certas matérias. Conheço pais que usam o Google Earth para ensinar geografia a seus filhos. Ou astronomia com um programa tão atraente quanto o Starry Night (Noite Estrelada). Na escola, esses e muitos outros recursos de software poderiam ser adotados para ilustrar aulas, mas sempre sob estrita orientação do professor.

NÃO HÁ MILAGRE

Esperar que a simples disponibilidade do computador e da internet de banda larga na escola deflagre uma revolução na qualidade do ensino é mais que ingenuidade. Nenhuma ferramenta ou tecnologia tem esse dom mágico.

Na verdade, a grande revolução educacional que um país pode realizar é resultado da combinação de um conjunto de fatores tão conhecidos como: a) investimentos públicos prioritários em educação; b) melhor formação e atualização do professor; c) remuneração condigna e a perspectiva de uma carreira atraente ao educador; d) melhoria constante do ambiente escolar, dando-lhe mais segurança e funcionalidade; e) especial atenção à saúde e à nutrição dos alunos; f) atualização permanente dos currículos e do material didático; g) envolvimento direto da família e da sociedade no problema da educação.

Esse último aspecto me preocupa de modo especial, pois a maioria dos pais brasileiros não acompanha de perto a vida de seus filhos na escola, não conhece sequer seus professores, nem sabe o que suas crianças fazem na internet.

No Brasil, vivemos um momento paradoxal. Sem realizar nenhuma reforma em profundidade da educação no País, o governo federal anuncia um projeto no mínimo eleitoreiro: a distribuição de centenas de milhares de laptops e a instalação de terminais de acesso de banda larga à internet em todas as escolas de primeiro e segundo graus do País.

Os resultados efetivos desse projeto para a educação serão quase nulos. Como sempre, a maioria dos políticos e governantes só pensa em obter votos e não está interessada nas melhores soluções para o País.

Ethevaldo Siqueira

Fonte: O Estado de São Paulo

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

As crianças diante dos dilemas morais

Distinguir entre certo e errado e agir segundo princípios éticos depende do desenvolvimento da cognição e da afetividade de crianças e jovens
Thais Gurgel

"Eu sempre fico de castigo porque faço besteira, coisa errada. Uma vez eu joguei um elástico (de cabelo) na bochecha da minha irmã. Eu também falo palavrão, falo cocô." Sofia, 5 anos
"E por que não pode fazer isso?" Repórter
"Porque todo mundo ganha castigo. Essa é a história do castigo." Sofia
Reprodução/Agradecimento Creche Central da Universidade de São Paulo (USP)
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Não há pais ou professores que não abram um sorriso de satisfação ao receber um elogio sobre a boa educação dos filhos ou dos alunos. A sensação de dever cumprido despertada nessas ocasiões é fácil de entender. Afinal, pelo senso comum, são eles os grandes responsáveis por garantir que crianças e adolescentes tenham uma vida social saudável e colaborem para a harmonia dos grupos dos quais fazem parte. De fato, pais e mestres são figuras centrais no desenvolvimento moral, ou seja, no julgamento que a criança tem sobre o que é certo ou errado. Mas, na prática, o verdadeiro protagonista desse amadurecimento é ela própria, que constrói desde cedo um conjunto de valores pessoais. E, mais importante ainda: é ela quem também toma decisões frente aos dilemas morais que encontra no dia a dia.

Nesse processo, o senso de justiça é um dos principais aspectos a serem desenvolvidos. Ele foi tema de estudo do suíço Jean Piaget (1896-1980), que, com base em pesquisa sobre a forma como os pequenos lidam com as regras em situações de jogos e dilemas morais, constatou que a construção do sentido de justo e injusto tem ligação com o desenvolvimento cognitivo. Segundo ele, as crianças passam por diferentes tipos de compreensão em relação às regras. Conforme amadurecem, obtêm cada vez mais condições de se relacionar com elas de maneira crítica. Assim, constituem uma moral dita autônoma, pela qual passam a considerar a intencionalidade dos atos.

Nos primeiros anos de vida, os pequenos vivem um período de iniciação às regras e precisam da intervenção constante de um adulto que os oriente sobre o que é aceitável – não morder o irmão e não bater nele, pedir um biscoito ao dono do pacote em vez de tomá-lo etc. "As regras existem para regular a relação entre as pessoas", diz Nelson Pedro-Silva, professor de Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Assis. "Todos nós abrimos mão de alguns desejos em vista de viver em sociedade, fato que a criança deve enfrentar desde cedo para que possa compreendê-lo."
"Aqui na creche tem uma regra: não subir no poste da quadra." Mileva, 5 anos
"E por que não pode subir?" Repórter
"Porque a gente pode cair e quebrar a cabeça." Mileva
"E mesmo assim vocês fizeram isso?" Repórter
"É porque a gente pensava que não tinha regra." Mileva
Conhecendo regras, os pequenos adquirem um primeiro repertório para atuar em grupo, mas não refletem sobre elas. Eles as cumprem porque respeitam uma autoridade (pais, professores, o porteiro do prédio, o primo mais velho) e não necessariamente porque concordam com elas. Se, por exemplo, uma criança da Educação Infantil souber que é proibido jogar objetos nos outros ou subir nos postes da quadra da escola (veja os diálogos da primeira imagem e do quadro acima), ela provavelmente não fará isso por temer uma reprimenda e não porque pensou sobre esses atos e suas consequências. Trata-se, assim, de uma moral dita heterônoma. "É fundamental, porém, que ela seja orientada a agir de maneira cooperativa em relação ao outro, mesmo quando ainda não consegue se conscientizar da importância disso", pondera Pedro-Silva.
Como ainda não tem condições de analisar regras, a criança se relaciona com elas pelo respeito à autoridade.
Dessa forma, por exemplo, num conflito em que um menino não deixa o outro participar de um jogo, porque este bate nos colegas e estraga a partida quando está perdendo, é importante que o professor faça uma mediação. Ele pode promover a escuta do garoto que foi excluído da brincadeira e do que teve seu jogo arruinado. Assim, pode-se chegar a um acordo para que ambos cooperem e possam jogar juntos – a forma de pensar deles é, com isso, desafiada.

O mesmo vale para os adolescentes. Em conversas orientadas, eles podem conhecer a perspectiva do outro e, assim, avançar na construção dos valores morais e da autonomia. É fundamental aproveitar situações que geram desequilíbrios na forma de pensar das turmas.

A moral também está ligada aos sentimentos e às emoções

Segundo Piaget, o desenvolvimento moral e, mais ainda, as ações relacionadas a ele dependem de uma espécie de "energia motora" para que ocorram: a afetividade. Esse aspecto ganhou cada vez mais espaço nas pesquisas e, hoje, o desenvolvimento de questões ligadas a sentimentos e emoções ocupa o primeiro plano nos estudos sobre a moralidade. Esse novo olhar teve início com as pesquisas da americana Carol Gilligan, que chamou a atenção para uma forma de desenvolvimento da moralidade definida como ética do cuidado, a qual se centra na capacidade de pensar na saúde das relações entre as pessoas. Com isso, distinguir o justo do injusto passou a ser visto como apenas um dos muitos aspectos do desenvolvimento moral da criança e do adolescente. A nova perspectiva ampliou as pesquisas para o desenvolvimento psíquico de outras virtudes, como a generosidade, a compaixão e a lealdade.
"Quando eu vejo alguém fazendo uma coisa que não pode, eu não conto. Eu guardo aqui na minha caixinha de histórias (apontando para a cabeça)." Caio, 5 anos
"E por que você prefere não contar?" Repórter
"Porque é muito feio falar. A pessoa leva bronca." Caio
"Mas o certo não é obedecer à regra?" Repórter
"Você iria achar legal levar uma bronca se fosse com você?" Caio
Distintas dos aspectos cognitivos, essas virtudes podem ser a chave para entender por que mesmo um garoto pequeno, como Caio, 5 anos, que demonstra ainda não se guiar por uma moral autônoma, assume a postura de não delatar os amigos quando eles infringem uma regra (leia o diálogo acima). "O desenvolvimento moral é um sistema dinâmico, um processo não só cognitivo, como afetivo, social e cultural", diz Ulisses Araújo, docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP), campus Leste. "Por mais críticos e conscientes que jovens e adultos sejam em relação à moralidade, ninguém escapa de oscilar entre a moral heterônoma e autônoma em seus atos."
A afetividade tem relação direta com a construção de valores e com a forma de agir frente a dilemas morais.

"No futuro eu quero ser desembargador. Gostaria de mudar as leis. A gente vê um monte de injustiças. Por exemplo, quando tem um arrastão e os ladrões não são pegos, enquanto uma pessoa que rouba um pão, porque tem fome, acaba ficando muito tempo na cadeia." Lucas, 12 anos
Reprodução/Agradecimento Escola de Aplicação da Universidade de São Paulo (USP)
De fato, distinguir o certo do errado não implica necessariamente em agir conforme seu juízo. Afinal, não há criança nem adulto que paute todos os seus atos por convicções morais (veja abaixo a justificativa de Guilherme, 16 anos, para uma possível mentira). Como entender então essa discrepância entre pensar e agir? "Não basta saber discernir e compreender as razões implicadas em determinada ética ou moral", pondera a psicóloga Vanessa Lima, docente da Universidade Federal de Rondônia (Unir). "Para ter ações morais, é preciso ser movido por uma vontade e um desejo morais que guiem aquela conduta." Outro aspecto que influencia uma ação moral, segundo Vanessa, é a representação que a criança ou o jovem têm de si próprio. "Se um adolescente, por exemplo, considera central a questão da honestidade em sua personalidade, ele provavelmente se guiará mais por esse valor do que por outros tidos como periféricos na visão que tem de si mesmo", explica (confira acima o desenho e a fala de Lucas, 12 anos).
Se é uma coisa que eu quero muito fazer e que eu julgo não ser algo errado, não vejo tanto problema em mentir (para pais ou professores). É uma reação a uma regra imposta e com a qual eu não concordo." Guilherme, 16 anos
Todos esses aspectos apontam para um longo processo de construção da moralidade, que começa na infância, se intensifica na adolescência e continua pela vida toda. Dessa forma, deve ser deixada de lado a ideia de que uma criança ou um jovem têm boa ou má índole. "O ser humano é complexo, e reduzi-lo ao inatismo é desconsiderar suas potencialidades", diz Vanessa. "Se fosse assim, teríamos apenas que fazer julgamentos precoces dos indivíduos que têm potencial para dar certo e errado." Crianças e jovens sempre poderão se aproximar dos princípios éticos. Basta que tenham suas convicções suficientemente postas em xeque.
Para construir a moral autônoma, o adolescente precisa de situações que desafiem seu modo de pensar.
* Os desenhos e os diálogos publicados nesta reportagem são de crianças da 5ª série do ensino fundamental e do 2º ano do ensino médio da Escola de Aplicação e de turmas de 5 e 6 anos da Creche Central da Universidade de São Paulo (USP), em São Paulo, SP

Consultoria de Maria Thereza Costa Coelho de Souza, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)
Quer saber mais?
CONTATOS
Nelson Pedro-Silva
Ulisses Araújo
Vanessa Lima

BIBLIOGRAFIA
Educação e Valores: Pontos e Contrapontos, Valéria Amorim Arantes, Ulisses Araújo e Joseph Puig, 168 págs., Ed. Summus, tel. (11) 3872-3322, 38 reais
Ética e Moral na Educação, Roque A. Neto e Margarete M. Rosito, 132 págs., Ed. Wak, tel. (21) 3208-6095, 19 reais
O Juízo Moral na Criança, Jean Piaget, 304 págs., Ed. Summus, tel. (11) 3872-3322, 60 reais
Moral e Ética - Dimensões Intelectuais e Afetivas, Yves de La Taille, 192 págs., Ed. Artmed, tel. 0800-703-3444, 36 reais
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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O turista e o peregrino


O mundo em que vivemos afeta profundamente a maneira de ser e de viver de cada um de nós e nem sempre nos damos conta disso. As decisões que tomamos diariamente, as escolhas que fazemos, as interpretações que damos aos acontecimentos são influenciadas pelo contexto social e cultural.
Isso quer dizer que os estilos de vida que adotamos também estão marcados pela maneira como o mundo se constitui.
As metáforas ajudam a compreender melhor as transformações que ocorreram e que estão em curso no nosso modo de viver. Zygmunt Bauman, pensador contemporâneo, construiu uma que ajuda a dar sentido e a interpretar a diferença entre o modo de estar no mundo décadas atrás e agora.
Para isso, ele contrapõe as imagens do peregrino e do turista.
O peregrino, figura característica de um mundo em extinção, é quem escolhe viajar em busca de algo para melhorar ou dar sentido à sua vida. Em sua árdua e longa jornada, que não tem prazo para terminar, ele não tem pressa e seu trajeto importa mais do que sua chegada, que ele não sabe quando nem onde ocorrerá.
Já o turista -figura marcante dos tempos atuais- viaja por diversão e com data marcada para voltar, escolhe seu destino por curiosidade ou influência do mercado de consumo do lazer e seu trajeto é apenas o modo de chegar a seu destino.
Qualquer contratempo nos planos do turista é vivido de forma dramática. Vou usar essa metáfora para compreender um pouco as mudanças dos papéis de mãe e de pai na atualidade.
Hoje, mal um filho nasce e os pais já se preocupam com o fim de sua jornada, que equivale a entregar o filho ao mundo para que ele viva por conta própria e com autonomia. Desse modo, pais de crianças muito pequenas procuram escolas que as preparem para o vestibular e o Enem, enchem seus filhos de atividades que os ajudem a enfrentar o futuro mercado de trabalho, programam com antecedência e em pormenores sua vida para realizar tudo o que planejaram para o filho.
Pais de crianças que resistem -por seu modo de ser- a tais planos frustram-se, sentem-se fracassados, usam de muitos artifícios para tentar resgatar o caminho originalmente traçado ou desistem precocemente de sua viagem. Preparar o filho para o futuro tornou-se, por força das pressões externas, missão mais importante do que conhecer e ouvir o filho, estar com ele, construir um vínculo afetivo. Essa imagem é muito parecida com a do turista, não?
Há pais que não pensam no fim de sua jornada a não ser quando constatam que ela terminou. Sabem que seu trajeto será longo e árduo, não têm pressa, encaram as vicissitudes como parte da caminhada, ligam-se mais ao filho que têm do que àquele que ele será. Esse modo de se relacionar com a paternidade tem mais relação com a imagem do peregrino, portanto.
É possível escolher ser mais peregrino na vida com os filhos do que turista, mesmo com as influências que sofremos. Para isso, entretanto, é preciso refletir e resistir a muitas pressões do mundo em que vivemos.


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ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (ed. Publifolha)

roselysayao@uol.com.br

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Livros de Paulo Freire para impressão


Caros alunos:

Vejam na sessão "sites interessantes", link para acesso e impressão de vários livros de Paulo Freire.

Acessem e leiam as idéias desse educador criativo e original.

Abs

Bido

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Educação tradicional, ao estilo japonês


Kumiko Makihara* Em Tóquio (Japão)
Se o som viaja a 331 metros por segundo quando a temperatura é de 0ºC, e a velocidade aumenta 0,6 metro por segundo a cada grau de temperatura, qual é a distância entre uma pessoa e um raio se ela ouve o estrondo cinco segundos depois que vê o raio, a uma temperatura de 5 graus Celsius?

Fiquei furiosa porque meu filho, de nove anos, não consegue resolver esse problema por mais que tenhamos resolvidos questões parecidas juntos várias vezes. A prova de Ciências é amanhã, e se ele não for bem, provavelmente não conseguirá um A em seu boletim.

E qual o problema se Yataro não tirar um A em Ciências na quarta série? É difícil para mim refletir sobre essa pergunta simples à medida que me afogo nas tentativas de evitar que ele naufrague nas provas da semana: Ciências, Compreensão de Leitura e Poesia Antiga. Na semana que vem: identificar os 47 Estados e governos das cidades do Japão, uma demonstração de como pesar itens numa balança e uma corrida de 1,5 quilômetro.

A escola primária particular de Yataro está situada no extremo mais tradicional do debate que acontece no país sobre qual é o melhor tipo de abordagem para a educação: o caminho ortodoxo da memorização adotado por causa de uma competição feroz, ou o método mais completo que promove o pensamento criativo e independente.

Regurgitar fatos tem sido uma capacidade há muito tempo prezada pelas escolas japonesas por causa dos exames rigorosos para entrar nas universidades do país. Mas esse tipo de ensino unidimensional foi criticado por ser "tsumekomi", ou voltado para os exames. Desde os anos 80, o país reduziu o horário a carga horária e o currículo escolar sob o lema "yutori", ou flexível.

Na última década, entretanto, a classificação acadêmica dos alunos de escolas primárias e secundárias caiu em várias pesquisas internacionais, e cada vez mais o yutori está sendo responsabilizado por este declínio. O pêndulo está retornando para um aumento de currículos e carga horária.

A escola de Yataro tem um nível de cobrança alto. Ele foi reprovado no exame de memorização de diálogos em inglês porque não fez os gestos que acompanhavam as falas. Ele é um leitor voraz, mas fica aturdido com questões como: "divida o trecho em quatro cenas com base no tempo, lugar, personagem e sentimentos do personagem principal, e escreva os números na primeira linha de cada cena".

Há recompensas para os vencedores - alguns professores dão adesivos e brindes para quem vai bem nas provas - e nada, exceto talvez a humilhação, para o resto dos alunos. Depois da corrida de 1,5 quilômetro, as crianças foram posicionadas de acordo com sua classificação, enquanto o último colocado chegava cambaleante, acompanhado por um professor de bicicleta.

A consciência que Yataro tem de sua colocação fez com que sua autoestima diminuísse. "Este ano vou chegar em 25º lugar ou antes na maratona", escreveu recentemente no meu cartão de aniversário. Não era um sonhado terceiro lugar, ou mesmo o décimo, mas uma autocrítica bem considerada. Numa lista de autoavaliação que ele preencheu no ano passado sobre 26 tarefas escolares, ele não deu um "ótimo" a si mesmo em nenhuma delas, nem mesmo na que ele havia tirado nota máxima, que
dizia: "Fui para a escola todos os dias em boa saúde".

Os pais também entram na disputa, torcendo para que seus filhos sejam melhores que os outros e ficando orgulhosos de seus sucessos. Quando os boletins foram entregues no ano passado, uma menina disse que a mãe instruiu-a a descobrir o máximo que pudesse sobre as notas dos colegas sem que revelasse muito sobre as suas próprias.

Eu senti uma alegria muito grande quando Yataro ficou em segundo lugar de sua classe numa prova de Ciências, não só porque nossas exaustivas sessões de estudo haviam sido recompensadas, mas porque a mãe do menino que ficou em primeiro lugar era uma cientista. Senti-me uma mãe vencedora, derrotada apenas por uma cientista que tinha uma vantagem injusta sobre os demais.

É difícil cultivar um amor pelo aprendizado num ambiente como esse.
Logo que Yataro chega da escola, pergunta "o que tenho que fazer hoje?" enquanto eu arranco sua mochila para encontrar a prova mais recente ou as folhas de dever de casa antes de nos sentarmos à mesa da sala de jantar entre pilhas de livros escolares.

Recentemente aconteceu um dos eventos escolares mais competitivos do
ano: o torneio anual de queimada, em que as quatro salas da mesma série competem entre si.

"Jogue nela!", gritou uma mãe ao meu lado enquanto as crianças atiravam a bola umas nas outras. A classe do meu filho teve uma grande virada, saindo do último lugar no ano passado para vencer o cobiçado título. A lição de casa naquele dia era uma composição sobre a partida; mínimo de duas páginas e meia e que provavelmente seria distribuída para todos os pais. E por um breve período, Yataro pode se rejubilar com a glória.

"Pela primeira vez em quatro anos", escreveu, "fiquei em primeiro".

* Kumiko Makihara é jornalista free-lance.

Tradução: Eloise De Vylder
Tags: contemporaneidade, educação

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quinta-feira, 23 de abril de 2009

O NÓ DO ENSINO PAULISTA


Após 14 anos no governo do Estado de São Paulo, o PSDB não tem do que se orgulhar com sua rede de ensino, cujos indicadores revelam desempenho medíocre, quando não declinante.
Fonte: Folha de SP - Editorial

O EX-MINISTRO da Educação e deputado federal Paulo Renato Souza (PSDB-SP) retorna ao cargo de secretário que já ocupara na administração Franco Montoro. Sua experiência e biografia indicam que o governador José Serra buscou nome de peso para cobrir um flanco desguarnecido da gestão tucana.

Após 14 anos no governo do Estado de São Paulo, o PSDB não tem do que se orgulhar com sua rede de ensino, cujos indicadores revelam desempenho medíocre, quando não declinante.

Em seus primeiros pronunciamentos, o secretário enfatizou uma missão política e não se mostrou tão preocupado em abordar as deficiências e vícios que afetam 5.000 escolas estaduais. São 5 milhões de estudantes e 230 mil professores, dos quais 100 mil contratados como temporários.

Era essa a tarefa a que se dedicava a ocupante anterior do posto, Maria Helena Guimarães de Castro, quando foi substituída em circunstâncias pouco esclarecidas, depois de ter permanecido apenas 20 meses na Secretaria de Educação.

Paulo Renato, em entrevista à Folha, não foi explícito quanto ao que planeja fazer. Limitou-se à intenção genérica de dar mais ênfase à alfabetização e à diversificação do ensino médio. Questionado diretamente sobre o mau desempenho dos alunos da rede pública paulista, apontou a existência de bons instrumentos de avaliação e culpou a má formação de professores, "um problema nacional".

Se for essa sua linha de defesa, precisa melhorá-la. Ninguém lhe recusa o mérito, quando ministro, de ter criado abrangente sistema de avaliação, bem como de ter sanado, com o Fundef, o problema da inconstância de verbas no ensino fundamental. Nos oito anos de Esplanada, no entanto, não atacou de modo decisivo a questão da qualidade do ensino.

Na educação básica paulista, embora tenha se completado a universalização do acesso, do ponto de vista qualitativo resta quase tudo por fazer.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Reflexões sobre a autonomia


Recebo muitas mensagens de pais às voltas com a educação dos filhos, e um fenômeno tem me chamado a atenção: a correspondência de pais cujos filhos fazem cursinho ou estão na faculdade tem crescido bastante. O ditado popular "filho criado, trabalho dobrado" agora parece ter aplicação literal.
São várias as questões com as quais os pais têm dificuldades de lidar: um jovem não quer estudar nem trabalhar, outro já prestou vestibular três vezes e quer fazer mais um ano de cursinho porque não desiste de tal universidade, uma jovem que acredita ter feito uma escolha equivocada de curso e agora quer largar tudo, outro que exige um carro porque não quer usar transporte coletivo etc.
Apesar da diversidade de situações, podemos arriscar uma hipótese abrangente: muitos jovens hesitam em entrar na vida adulta. Essa adolescência estendida tem sido construída com o apoio das instituições mais importantes na formação deles: a família e a escola.
Nunca falamos tanto em autonomia quando tratamos da educação dos mais novos. Pais de crianças com menos de cinco anos já autorizam o filho a passar a noite em casa de conhecidos, permitem que escolha suas roupas, brinquedos e até a escola que frequentará.
Um pouco mais tarde, em nome da autonomia, muitas crianças são abandonadas à mercê de seus parcos recursos de autocontrole.
Isso quer dizer que damos autonomia às crianças e aos adolescentes quando ainda não têm competência para usá-la.
Aliás, nunca é demais lembrar que o processo de construção da autonomia passa, necessariamente, pela heteronomia, ou seja, por um período de submissão a alguns adultos.
Parece que essa autonomia significa sair de cena para que o jovem "protagonize" sua vida.
Mas é preciso entender que a passagem da heteronomia à autonomia ocorre a partir da adolescência, jamais na infância, e com a devida tutela dos pais e da escola, que devem acompanhar como o jovem administra a liberdade pela qual terá de se responsabilizar.
Tal atitude faz parceria com outra assumida por muitos pais. Eles fazem de tudo para evitar que os filhos sofram, enfrentem as dificuldades da vida, se frustrem, arquem com as responsabilidades sobre seus atos. Ao mesmo tempo, tentam oferecer-lhes a melhor vida social possível.
Isso faz com que os jovens cheguem ao final da adolescência sem autoconfiança, sem orgulho de seus feitos, com enorme dificuldade para perseverar diante das dificuldades e com medo do futuro. Aí dá para entender sua falta de resistência diante da adversidade, dos obstáculos e das exigências do final da adolescência. A opção que surge, então, é estender esse período, evitar a responsabilidade de ser adulto, viver por sua própria conta e risco.
Os pais que querem ajudar esses jovens precisam sair de cena, ainda que tardiamente, para que eles finalmente tenham oportunidade de realizar o potencial que têm.


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ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (ed. Publifolha)

rosely.sayao@grupofolha.com.br

blogdaroselysayao.blog.uol.com.br

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Meninas afegãs desafiam ataque terrível se recusando a suspender os estudos

14/01/2009 -


Dexter Filkins
Em Kandahar (Afeganistão)
Certa manhã há dois meses, Shamsia Husseini e sua irmã estavam caminhando pelas ruas lamacentas até a escola local de meninas, quando um homem encostou de moto ao lado de Shamsia e lhe fez uma pergunta que parecia comum.

"Vocês vão para a escola?"

Então o homem arrancou a burca da cabeça de Shamsia e borrifou ácido no rosto dela. Cicatrizes, irregulares e descoloridas, agora se espalham pelas pálpebras de Shamsia e grande parte de sua bochecha esquerda. Atualmente sua visão fica borrada, o que lhe dificulta a leitura.

Mas se o ataque com ácido contra Shamsia e 14 outras pessoas - alunas e professores - visava aterrorizar as meninas a permanecerem em casa, parece que ele fracassou completamente.

Hoje, quase todas as meninas feridas estão de volta à Escola para Meninas de Mirwais, incluindo Shamsia, cujo rosto foi tão gravemente queimado a ponto de ter sido enviada para o exterior para tratamento. Talvez ainda mais notável, foi o fato que quase todas as outras alunas nesta comunidade profundamente conservadora também voltaram - cerca de 1.300 ao todo.

"Meus pais me disseram para continuar indo a escola mesmo se fosse morta", disse Shamsia, 17 anos, em um pausa após a aula. A mãe de Shamsia, como quase todas as mulheres adultas na área, não sabe ler e nem escrever. "As pessoas que fizeram isso comigo não querem que as mulheres tenham instrução. Eles querem que continuemos estúpidas."

Nos cinco anos desde que a Escola para Garotas de Mirwais foi construída aqui pelo governo japonês, ela parece ter provocado uma espécie de revolução social. Enquanto o Taleban aperta seu laço ao redor de Kandahar, as garotas vão para a escola toda manhã. Muitas delas caminham mais de três quilômetros desde suas casas de tijolos de barro no alto das colinas.

As garotas entram na escola murada, muitas delas vestindo trajes que cobrem da cabeça aos pés, conversando, se divertindo e rindo de formas que são inconcebíveis do lado de fora -para garotas e mulheres de qualquer idade. Mirwais não tem fornecimento regular de eletricidade, não tem água encanada e nem ruas pavimentadas. As mulheres são raramente vistas, e quando são elas aparecem em burcas que deixam seus corpos sem forma e tornam seus rostos invisíveis.

Logo, foi particularmente assustador em 12 de novembro, quando três pares de homens em motos começaram a rondar a escola. Uma das duplas usou um borrifador, outro uma pistola d'água e outra um jarro. Elas atingiram 11 meninas e quatro professores ao todo; seis foram parar no hospital. Shamsia foi quem sofreu o pior.

Os ataques pareciam ser obra do Taleban, o movimento fundamentalista que está lutando contra o governo e a coalizão liderada pelos americanos. Proibir as meninas de estudar foi um dos símbolos mais notórios do regime do Taleban antes de ser derrubado em novembro de 2001.

A construção de novas escolas e assegurar que as crianças -especialmente as meninas- as frequentassem era um dos principais objetivos do governo e dos países que contribuíram para a reconstrução do Afeganistão. Alguns dos estudantes na escola de Mirwais estão no final da adolescência ou já são jovens adultos, frequentando a escola pela primeira vez. Mas ao mesmo tempo, na guerra de guerrilha que se desdobra no sul e leste do Afeganistão, o Taleban transformou as escolas em um de seus principais alvos.

Mas quem exatamente esteve por trás do ataque com ácido é um mistério. O Taleban negou qualquer participação nisso. A polícia prendeu oito homens e, pouco depois, o Ministério do Interior divulgou o vídeo da confissão de dois deles. Um deles disse que foi pago por um oficial do Diretoria de Interserviços de Inteligência, a agência de inteligência paquistanesa, para realizar o ataque.

Mas em uma coletiva de imprensa na semana passada, Hamid Karzai, o presidente afegão, disse que não houve envolvimento paquistanês.

Uma coisa é certa: nos meses que antecederam o ataque, o Taleban ingressou na área de Mirwais e no restante dos arredores de Kandahar. Logo, cartazes começaram a aparecer nas mesquitas locais.

"Não deixe suas filhas irem à escola", dizia um deles.

Nos dias que se seguiram ao ataque, a Escola para Meninas de Mirwais permaneceu vazia; nenhum dos pais deixava suas filhas se aventurarem para fora de casa. Foi quando o diretor, Mahmood Qadari, foi trabalhar.

Após quatro dias olhando para salas de aula vazias, Qadari convocou uma reunião com os pais. Centenas compareceram à escola -pais e mães- e Qadari implorou para que permitissem o retorno de suas filhas. Após duas semanas, algumas poucas voltaram.

Então Qadari, cujas três filhas vivem no exterior, incluindo uma nos Estados Unidos, pediu o apoio do governo local. O governador prometeu um maior policiamento, uma ponte para atravessar uma estrada movimentada próxima e, mais importante, um ônibus. Qadari convocou outra reunião e disse aos pais que não havia mais motivo para manter suas filhas em casa.

"Eu lhes disse, se vocês não enviarem suas filhas para a escola, então o inimigo vence", disse Qadari. "Eu lhes disse para não cederem às trevas. Educação é a forma de melhorar nossa sociedade."

Os adultos de Mirwais não precisaram de muita persuasão. Nem o ônibus, nem a polícia e nem a ponte se materializaram, mas as meninas começaram a comparecer assim mesmo. Agora apenas duas dúzias de meninas perdem aulas regularmente; três delas são meninas que foram feridas no ataque.

"Eu não quero ver as meninas sentadas desperdiçando suas vidas", disse Ghulam Sekhi, um tio de Shamsia e de sua irmã, Atifa, 14 anos, que também foi queimada.

Apesar de toda a incerteza do lado de fora de seus muros, a escola de Mirwais está cheia de vida. Suas 40 salas de aula estão tão lotadas que aulas também são dadas no pátio em quatro tendas, doadas pela Unicef. O Ministério da Educação afegão também está construindo um prédio permanente.

Nos últimos dias a escola passou pelo período de provas. Em uma sala, uma aula de geografia, uma professora fazia uma série de perguntas enquanto suas alunas escutavam e escreviam as respostas no papel.

"Qual é a capital do Brasil?" perguntou a professora, chamada Arja, andando de um lado para outro.

"Agora, quais são suas maiores cidades?"

"Quantas vezes os Estados Unidos são maiores do que o Afeganistão?"

Em uma carteira na primeira fila, Shamsia, a garota com o rosto queimado, pensava nas perguntas enquanto escondia sua maior cicatriz com a mão. Ela se abaixou na direção do papel, esfregou os olhos e escreveu algo.

Os médicos disseram para Shamsia que seu rosto poderá precisar de cirurgia plástica para que tenha chance das cicatrizes desaparecerem. É um sonho distante: a aldeia de Shamsia não tem nem mesmo fornecimento regular de eletricidade e seu pai é inválido.

Após a aula, Shamsia se misturou com as outras garotas, circulando, rindo e brincando. Ela parecia não consciente de sua desfiguração, até começar a recontar o caso.

Ela disse: "As pessoas que fizeram isso não sentem a dor dos outros".

Tradução: George El Khouri Andolfato