quinta-feira, 5 de junho de 2008

Em busca do amor, jovens sauditas desafiam labirinto de regras

19/05/2008


Por Michael Slackman*
Em Riad, Arábia Saudita

Nader al-Mutairi contraiu os ombros, fechou os punhos com força e disse: "vamos cumprir nossa missão". Então o jovem entrou na sala de espera fria e vazia de uma clínica dentária, com a intenção de pedir o telefone da jovem que trabalhava como recepcionista.

Pedir o telefone de uma mulher é uma situação que pode deixar um homem ansioso em qualquer lugar do mundo. Mas na Arábia Saudita, ser pego com uma mulher que não seja da família pode significar prisão, tortura e desonra, a pior das penas numa sociedade em que preservar a reputação da família depende da adesão fiel a um rígido código de segregação entre os sexos.

Acima de tudo, Nader temia que seu primo Enad al-Mutairi descobrisse que ele estava quebrando as regras. Nader é noivo da irmã de Enad, Sarah, de 17 anos. "Por favor, não conte a Enad sobre isso", disse. "Ele vai me matar."

O sol já estava se pondo quando Nader entrou na clínica. Quase instantaneamente, sua determinação se esvaiu. Seus ombros se encolheram, suas mãos se abriram e sua voz começou a tremer. "Não é meu dia de sorte; vamos embora", disse.

Foi um ímpeto de rebelião, quase que instantaneamente reprimido. No Ocidente, a juventude é uma época típica de rebelar-se contra a autoridade. Mas o que ficou evidente a partir de uma série de entrevistas com os jovens daqui foi que eles aceitam completamente as demandas religiosas e culturais da sociedade mais conservadora do mundo muçulmano. Eles podem se irritar com as regras, e às vezes até mesmo tentar fugir delas, mas ao mesmo tempo são impiedosos ao condenarem aqueles que audaciosamente as desdenham. Além disso, estão comprometidos a perpetuar essas mesmas regras com seus próprios filhos.

Isso sugere que a interpretação rígida do Islã pela Arábia Saudita, que não é contestada na maioria dos lares pelos integrantes da próxima geração e que é disseminada além das fronteiras do país através do dinheiro saudita numa época de resgate da religiosidade, irá cada vez mais moldar a maneira pela qual os muçulmanos em todo o mundo vivem sua fé. Jovens como Nader e Enad aprendem que eles são os guardiões da reputação da família, espera-se que eles protejam as mulheres da família da vergonha e evitem desonrar suas famílias através de seu próprio comportamento. Este é um exemplo clássico de como os sauditas mesclaram sua fé com suas tradições das tribos do deserto.

"Um dos valores mais importantes do mundo árabe é a honra", diz Enad. "Se minha irmã sai na rua e alguém a atacar, ela não será capaz de se defender. A natureza dos homens é que eles são mais racionais. As mulheres não são racionais. Com umas poucas palavras, um homem pode conseguir o que quiser de uma mulher. Se eu chamar alguém na rua e uma garota responder, eu tenho de pedir desculpas. É uma situação grave. Uma violação do lar."

Enad é um macho alfa, um policial de 20 anos de idade com um temperamento explosivo e um prazer em zombar dos outros. Nader, 22, tem uma fala suave, um sorriso gentil e uma inclinação para seguir em vez de liderar.

Eles são mais do que primos; são amigos e confidentes desde a infância. Esse é o padrão na Arábia Saudita, onde as famílias com freqüência são grandes e insulares. Enad e Nader estão entre dezenas de primos da família Mutairi que desde a infância passaram quase que todo o seu tempo livre juntos: garotos aprendendo a serem garotos, e agora homens, juntos.

Eles são jovens sauditas de classe média, não são ricos nem pobres, não pertencem ao sul ou ao leste mais liberais, mas moram no coração conservador do país, Riad. É uma cidade plana, limpa, de 5 milhões de habitantes, que brilha com a riqueza do petróleo, tem dois arranha-céus de vidro e ruas obstruídas com gigantes SUVs. A cidade tem muito pouco a oferecer em termos de entretenimento para os homens jovens, sem cinemas e com poucos lugares para praticar esportes. Quando solteiros, os homens não podem nem mesmo entrar nos shoppings onde as mulheres fazem compras.

Guardiões da propriedade
Afundado na cadeira estofada do café de um hotel, Nader tomava goles de suco de laranja natural enquanto brincava com seu telefone celular. Se há algum acessório que permite um pouco de auto-expressão para os homens sauditas, é o telefone celular. O de Nader está cheio de fotos de mulheres bonitas retiradas da Internet, closes de rostos de cantoras e atrizes. O toque de seu celular é uma canção de amor em árabe (um dos toques de celular mais populares entre seus primos é a música tema do filme "Titanic").

"Sou muito romântico", diz Nader. "Não gosto dos filmes de ação. Gosto de romance. 'Titanic' é o número 1. Também gosto de 'Head Over Heels' ["Cinco Evas e um Adão"]. Romance é amor."

Três dias depois, num restaurante vizinho, Nader e Enad se concentravam em comer com talheres, sentindo-se um pouco constrangidos já que estão acostumados a comer com as mãos.

De repente, os dois jovens pararam de se concentrar na comida. Uma mulher havia entrado no restaurante, sozinha. Ela estava completamente vestida com uma abaya negra (traje típico das mulheres muçulmanas), com o rosto coberto com um véu preto, cabelo e orelhas cobertas por um tecido preto justo. "Olhe só o Batman", disse Nader zombando, e segurando o riso.

Enad fingiu jogar seu cigarro na mulher, que nesse momento já estava sentada a uma mesa. Ela ficou irritada com os dois jovens, como se tivesse sido pega fazendo algo errado por seus pais.

"Ela está sozinha, sem um homem", disse Enad, explicando por que eles estavam enojados, não apenas com ela, mas também com os parentes homens da mulher, onde quer que estivessem.

Quando um homem se juntou à ela à mesa - alguém que eles assumiram era o seu marido - ela retirou o véu da face, o que aumentou a hostilidade de Enad e Nader. Eles continuaram a zombar da mulher e a fazer gestos e comentários até que o casal mudasse de mesa. Mesmo assim, a mulher ficou tão nervosa que passou a segurar o véu conscientemente sobre seu rosto durante toda a refeição.

"Graças a Deus nossas mulheres estão em casa", disse Enad.

Nader e Enad rezam cinco vezes por dia, normalmente abandonam qualquer atividade que estejam fazendo para ir com seus primos à mesquita mais próxima. A oração é obrigatória no reino, e a polícia religiosa obriga todas as lojas a fecharem durante o horário de oração. Mas isso também é levado de forma casual, como uma rotina para Nader e Enad, assim como parar para tomar um café.

Para Nader e Enad, a oração é essencial. Do ponto de vista de Enad, a jihad [guerra santa] também, e não a abordagem mais moderada do tema, que enfatiza os bons atos, mas sim a idéia de pegar uma arma e lutar em lugares como o Iraque e o Afeganistão.

"A jihad não é um crime, é um dever", disse Enad numa conversa casual.

"Se alguém entra em sua casa, você vai ficar ali parado ou vai lutar contra o invasor?", disse Enad, inclinando-se para frente, com suas mãos curtas e fortes sobre os joelhos. "As terras árabes ou muçulmanas são como a nossa casa."

E ele, iria para a guerra?

"Eu precisaria da permissão dos meus pais", disse.

Nader, por sua vez, respondeu: "Não pergunte para mim, tenho medo do governo."

O conceito é um princípio tão fundamental, tão enraizado nas suas psiques, que eles não vêem nenhum conflito entre sua crença na jihad armada e seu trabalho como agentes de segurança do Estado. Como policial, Enad ajuda a fazer batidas em supostos esconderijos terroristas. Nader trabalha no exército como oficial de comunicações.

Cada um ganha cerca de 4 mil riais por mês, cerca de US$ 1.200, quantia longe de ser suficiente para se tornarem independentes de seus pais. Mas esta não é uma grande preocupação, porque se espera que os pais sustentem até mesmo os filhos adultos, para assegurar que eles tenham um lugar para viver e os meios para se casarem. Para muitos pais, sustentar os filhos com dinheiro é visto como seu principal dever - sua honra -, mais do que assegurar que eles recebam educação formal.

Todos os homens jovens têm um bigode e cavanhaque obrigatórios, e na maioria das vezes vestem-se com o robe tradicional. Nader prefere o thobe branco, que vai até o calcanhar; Enad prefere bege.

Mas nos finais de semana, eles adotam um visual louco e transgressor, usando calças esportivas, camisetas agarradas de manga curta, cores vibrantes, listras combinadas com estampas xadrez, um monte de velcro e elásticos nos sapatos. Nas roupas estilo ocidental, ambos parecem menores, e um pouco gordinhos. Nader diz gentilmente, "Eu não faço exercício."

Vida familiar
Há outras oito crianças na casa em que Enad vive com seu pai, sua mãe e a segunda mulher de seu pai. O apartamento não tem muitos móveis, e nada na parede. Os homens e meninos se reúnem numa sala ao lado do corredor principal, sentados num carpete bege sujo, assistindo a uma televisão equilibrada numa estante torta. As mulheres têm uma sala de estar parecida, quase idêntica, mas as portas fechadas.

A casa ainda é um refúgio para Enad e seus primos, que com freqüência passam o tempo livre dormindo, assistindo Dr. Phil e Oprah legendados na televisão, bebendo café com cardamomo ou chá doce - e fumando.

Enad e Nader sempre foram próximos, mas sua relação mudou quando Nader e Sarah ficaram noivos. O pai de Enad concordou em deixar Nader se casar com uma de suas quatro filhas. Nader escolheu Sarah, apesar de ela não ser a mais velha, em parte porque ele se lembra de ter visto o rosto dela quando criança e achá-la bonita.

Eles logo assinaram um contrato de casamento, que os tornou legalmente casados, mas pela tradição não se consideram comprometidos até a festa de casamento, marcada para essa primavera. Antes disso, eles não podem se ver ou passar nenhum tempo juntos.

Nader disse que espera ver sua nova esposa pela primeira vez depois da cerimônia do casamento - que também será separada por sexo - quando serão fotografados como marido e mulher.

"Se você quiser saber como é o rosto de sua mulher, olhe para o irmão dela", disse Nader defendendo o costume de casar com alguém que ele só viu uma vez, brevemente, quando era criança.

Esse é o Nader tradicional, que às vezes entra em conflito com o Nader romântico.

Logo seu telefone celular bipou, indicando uma mensagem de texto. Nader ficou ruborizado, mostrou a língua e virou-se para ler a mensagem, que foi enviada por "Meu Amor". Ele fala por telefone e troca mensagens de texto com Sarah secretamente. Quando ela liga, ou escreve uma mensagem, seu telefone mostra as palavras "Meu Amor" sobre dois corações vermelhos entrelaçados.

"Eu tenho uma conexão", disse ele, baixinho, enquanto lia a mensagem, explicando como Sarah consegue se comunicar com ele.

Sua conexão é Enad, que secretamente deu a Sarah um telefone celular que Nader havia comprado para ela. Essas conversas são tabu e poderiam causar uma briga entre as duas famílias. Então eles se falam clandestinamente, como se escapassem para um encontro depois que os pais fossem dormir.

Enad guarda o segredo, mas isso aumenta a tensão velada entre os dois primos, conforme Nader tenta desenvolver sua própria identidade como futuro chefe de família, como um homem.

Enad zomba de Nader, dizendo em certo ponto: "Daqui a um ano você vai encontrar minha irmã de bigodes e ele na cozinha."

"Mentira", diz Nader, reunindo toda sua força para se defender. "Sou um homem."

Outro ponto polêmico: a lua-de-mel. Nader está planejando levar Sarah para a Malásia, e Enad quer ir junto. Ele diz que Nader deve um favor a ele. "Me leve", diz Enad, com um toque de ironia.

Nader não sabe dizer se o primo está brincando ou falando sério. "Sabe, ele é meio louco às vezes", diz Nader. "Ele está sempre zangado. Não, ele não vai junto. Não é uma boa idéia."

De volta ao vilarejo
Nader cresceu em Riad, e seus pais, como os de Enad, são primos em primeiro grau. Enad diz que sua forma de pensar foi moldada no vilarejo de Najkh, a 560 quilômetros de Riad, onde ele morou até os 14 anos com seu avô. É lá que ele ainda se sente mais confortável.

Sempre que pode, um primo o leva para a casa do avô, um caixote de concreto no deserto, a seis quilômetros e meio da casa mais próxima. Há um quintal de areia cercado por um muro, com pilhas de madeira usada para aquecer a casa nos meses frios do inverno.

Não há móveis dentro da casa, apenas algumas almofadas no chão e um tapete de oração apontado na direção de Meca. Enad e seus primos jogam o lixo sem pensar para fora da janela da cozinha e pelo quintal, esperando que o "garoto da casa", um homem indiano chamado Nasreddin, limpe sua sujeira - o que ele faz.

Enad pouco fala e esconde seus cigarros quando o avô aparece. Ele nunca contaria ao pai ou ao avô que fuma. Enad continua sem expressão quando um primo diz que uma de suas primas, uma jovem chamada Al Atti, de 22 anos, está interessada nele. O tópico surgiu porque outro primo, Raed, havia pedido a mão de Al Atti, e ela recusou.

O conflito e o flerte esbarraram em muitos assuntos - masculinidade, amor, relações familiares -, o que gerou uma confusão de cochichos, e até Enad se envolveu.

Al Atti contou a suas irmãs que gostava de Enad, mas deixou claro que nunca iria admitir isso publicamente. Então pediu a uma das irmãs para espalhar a notícia de um primo a outro, até chegar em Enad. "É proibido anunciar o seu amor. Isso é impossível", disse ela.

A notícia finalmente chegou a Enad, que tentou permanecer frio apesar de estar claramente interessado, e lisonjeado. Nessa altura, o próprio Enad estava cochichando sobre Al Atti, tentando descobrir uma forma de se comunicar com a jovem sem falar pessoalmente com ela. Ele pediu a uma das mulheres que visitavam a casa para telefonar para ela, e então transmitir sua mensagem de interesse.

Enad disse que nunca passou pela sua cabeça ir atrás dela, mas um homem - um homem de verdade - não pode rejeitar uma mulher que esteja interessada nele. Para tirar seu primo Raed fora da jogada, ele sugeriu que o irmão de al Atti levasse Raed para ouvir a recusa de Al Atti pessoalmente, na casa dela.

"Por detrás de uma parede", disse Enad.

"O amor é perigoso", disse Al Atti sentada com suas irmãs em sua casa. "Ele pode arruinar sua reputação."

Uma questão de romance
Foi uma visita breve de dois dias no vilarejo, e então Enad já estava de volta a Riad para trabalhar. Em Riad ele parecia tanto animado quanto atormentado pelo interesse de Al Atti.

Naquele fim de semana, ele e Nader foram para o deserto, nos arredores de Riad, onde os jovens vão para dirigir jipes pela areia e relaxar, longe da fiscalização da polícia religiosa e dos vizinhos. Eles sentaram-se um ao lado do outro sobre um cobertor.

Nader começou falando.

"Sou uma pessoa romântica", disse. "E não há romance."

O que Nader quis dizer foi que as tradições sauditas não permitem o romance entre casais jovens e solteiros. Há muitas histórias de jovens que se encontram secretamente, se apaixonam, mas são incapazes de contar a seus pais porque não poderiam nem explicar como se conheceram, antes de mais nada. Um jovem casal disse que depois de dois anos se encontrando secretamente eles contrataram uma pessoa para apresentá-los para que seus pais pensassem que foi assim que se conheceram.

Agora, no deserto, a sinceridade de Nader confronta Enad.

"Ele acha que não existe romance. Como pode não haver romance?", diz Enad, seus olhos se arregalando conforme sua raiva ia crescendo. "Quando você se casar, seja romântico com sua esposa. Você quer conhecer uma mulher na rua para poder ser romântico?"

Nader ficou intimidado, e amedrontado.

"Não, não", disse ele.

"Me convença então de que você está certo", retrucou Enad.

"Estou dizendo que não há romance", disse Nader, tentando contra-atacar.

Enad não amoleceu, gritando com seu primo.

Na frente dele, Nader disse: "Enad sabe tudo."

Então se deu por vencido. "Tudo bem, existe romance", disse, levantou-se e foi embora, envergonhado e ruborizado.

Tradução: Eloise De Vylder

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